quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Meu orgulho te mede


dos pés à cabeça.

Sorrisos na manteiga

Hoje eu me lembrei de quando desenhava sorrisos na margarina. Em minhas lembranças, eu era tão feliz. Se bem me lembro eu corria pela rua e entrava em construções, em velhas casas que não se alugava. Em casas baldias, cheias de mato do lado de fora e vermelhões sem cera do lado de dentro.

Corria de quê? Para que eu corria tanto? Corria para aproveitar o dia que se encerrava às seis da tarde - no mais tardar às sete, quando os adultos tinham algo mais importante para fazer. Corria porque, naquela época o dia era curto. O dia é sempre curto quando somos felizes.

O mesmo pau que era a metralhadora, era também a espada. As balas imaginárias sempre zuniam perto dos ouvidos dos inimigos. Entrincheirados em quintais alheios, duplamente escondidos, dos inimigos e da vizinha má que, certamente, levava mais a sério esse papo de propriedade privada do que eu. Eu me preocupava mais com os inimigos.

Havia muros baixos, portões sem cadeados. Trocávamos velhas garrafas por picolés de diferentes cores. O picolezeiro era sempre um velhinho, a não ser quando meu primo também resolveu vendê-los. Lembro dos palitos premiados, eu poderia pegar um outro picolé no dia seguinte, de graça, ou eu poderia chupar outro picolé no mesmo dia se corresse e ainda o alcançasse na rua de cima.

Eu sentia inveja dos ossos quebrados dos meus amigos, sinal claro de que foram mais ousados do que eu. Essa foi a minha grande frustração de moleque, não ter quebrado nenhum osso, mas jogava cadeira salva de igual para igual com os mais velhos.

Os refrigerantes num engradado atrás da porta, escondidos, sempre prenunciavam festa. Acho que todo mundo era mais pobre que hoje.

Eu era feliz?

O que foi feito daquele sorriso fugidio na manteiga, que nunca ficava como o do comercial? Onde estão minhas armas e porque hoje tenho tanto medo de casas vazias, à noite? Hoje só compro picolés caros na padaria. Bebo refrigerante todos os dias. Por que é que os dias estão mais longos? Por que é que o dia demora tanto a passar, hoje?

sábado, 2 de fevereiro de 2008



Outro conto de ônibus


Eu estava atrasado ontem, quando entrei naquele ônibus que me levaria até o Centro. Não era preciso fazer a integração, afinal, o novo endereço da estamparia é no centro da cidade mesmo, um pouco abaixo da Santa Casa.

No ponto, eu havia engatilhado uma conversa com uma amiga, mas não pude continuar dentro do ônibus, pois os últimos dois lugares que havia, juntos, uma menina que entrara antes os tinha ocupado. Tivemos então que sentar em bancos distintos, esse foi o final prematuro de nossa conversa. Sentei próximo ao banco dela, imaginei que seria de bom tom eu me despedir dela quando chegássemos ao ponto onde desceríamos. Ficou claro muito rápido, no entanto, que não seria fácil ficar naquele local: passados uns dois pontos, todos os lugares “sentados” estavam já ocupados, e no corredor já se começavam a apinhar as pessoas. Por ser dia primeiro, os aposentados se dirigiam aos bancos, então eu teria de ceder logo meu lugar a um idoso.

Entrou uma senhora gorda, que se movimentava com dificuldade pelo corredor e que passava de maneira muito desconfortável pela roleta. Eu me levantei e ela sentou-se no lugar que eu acabava de deixar vago. Tudo muito normal, nenhum agradecimento, nada assim – os francanos têm uma capacidade muito evidente de serem frios e objetivos, às vezes – sabíamos que eu cumprira o meu papel de levantar e que ela cumprira o seu papel de ocupar aquele lugar. Não havia necessidade de uma palavra ser dita ali.

Fiquei de pé no corredor, notei então que um velho estava sentado e ocupando o corredor com metade de seu corpo. Aquilo atrapalhava a circulação, então olhei para ver o que acontecia. A moça que frustrara os meus planos ao ocupar um daqueles dois últimos lugares, aquela mesma que entrara pouco antes de mim e de minha amiga no ônibus, ela havia engatilhado uma conversa com uma amiga que estava no banco detrás do seu, então sentara mais ou menos de lado no banco, de maneira que ocupava o seu lugar todo e parte do outro lugar, obrigando o aquele senhor a ficar naquela situação desconfortável. Mesmo diante do inconveniente que infringia, conversava animada, exibindo toda a sua juventude e estupidez que se projetavam brancas por uma bermuda que exibia as suas pernas. Sua conversa era alta e podia-se ouvir sem nenhum esforço todo o conteúdo (?).

Acomodamo-nos àquele transtorno da melhor maneira que pessoas que andam de ônibus com alguma freqüência conseguem. No corredor continuava a aumentar o número das pessoas que se dependuravam naqueles varais de gente. A situação ficava mais desconfortável. Foi quando a mulher que sentava no mesmo banco da amiga resolveu se levantar e ir para a porta, pois seu ponto se aproximava. Então, para minha surpresa, a menina das pernas brancas atirou sua mochila por sobre o seu acento, ocupando com ela o lugar que acabava de ficar vago. Então se levantou e tivemos que nos espremer para que ela pudesse pular para o banco de sua amiga; ela bem poderia ter ocupado aquele lugar desde o início, mas resolvera fazer aquilo apenas naquele momento de ônibus lotado. O senhor que até então atrapalhava o tráfego pelo corredor saltou para o lugar da moça, à janela, e uma nova senhora ocupou o seu lugar, agora devidamente acomodada dentro do espaço de seu banco. A viagem seria mais tranqüila para mim a partir de então, pois pude me encostar nos bancos ao invés de ficar no meio do corredor.

Uma nova cena se formou, envolvendo inclusive aquela senhora que acabava de sentar. Enquanto eu estava distraído com os acontecimentos que descrevi, uma nova cena se formou ao meu redor sem que eu percebesse. Quantas dessas cenas não devem se formar ao nosso redor sem que sejam notados por nós: cada vida ocupando um lugar no ônibus e pensando, acontecendo, vivendo e explodindo discretamente. Um menino que eu não havia notado até então se inclinava e olhava as duas belas amigas com algum interesse indiscreto. Pensei a princípio que ele as conhecia de antemão, mas os fatos que se seguiram fizeram entender que não era isso. O menino começou a conversar com elas de forma bem alta alguma frase que era repetida de maneira insistente. Essas coisas sempre nos pegam de surpresa, mas acho que era alguma coisa como “Obrigado por me deixar sentar!”.

A mulher que tinha sentado ainda há pouco se voltou para trás danou de forma incisiva com o menino. Ele obedeceu prontamente e se calou, as duas meninas ficaram mudas também, mas havia um certo ar de graça em seus rostos, mais tarde eu interpretei esse ar de “graça” como falta de piedade mesmo, notei então que talvez aquele menino fosse mais velho do que pensei a princípio. Na outra fileira uma senhora desocupou um lugar e o ofereceu ao “menino”, ele se sentou ali quase que mecanicamente, nenhum sinal de satisfação foi esboçado por ele, então a mulher que ralhara com ele pouco antes gritou a alguém:

- Fulano! fique de pé ao lado dele para ele não sair!

Logo, um senhor, talvez o marido dela, longas barbas brancas, ocupou a lateral do banco fechando-o como se fosse uma porta.

Aquela cena toda, aquela senhora que desocupou o seu lugar para aquele menino com deficiência mental sentar, sugeriu que talvez exista uma espécie de acordo entre os mais velhos de uma convivência paciente com os mais jovens. As duas meninas preferiram rir da situação a tentar ajudar uma pessoa naquela manhã, então os idosos buscaram uma solução entre eles.

Eu aprendi a ceder lugar aos mais velhos em minhas aulas de terceira e quarta séries do primeiro grau. Hoje eu interpreto isso não apenas como uma norma vazia de etiqueta, mas a vida prática indica que os mais velhos sofrem mais dentro os transportes coletivos, logo, devemos abrir mão de nosso conforto para aliviar uma dor alheia. Assim como deixar de comer carnes para diminuir o sofrimento absoluto no mundo pode ser razoável a um grande número de pessoas, essas pequenas ações podem também reduzir a quantidade de sofrimento sobre o mundo. Se fosse mera etiqueta e um respeito vazio aos mais velhos talvez eu não continuaria a repetir esse gesto, mas trata-se de ter piedade. Essas ações, quando repetidas, mesmo que por obrigação, costumam incutir um sentido de piedade no espírito daquelas pessoas que as praticam.

Aquelas duas meninas me fizeram lembrar porque se deve ceder lugar num banco a um velho. Fizeram lembrar também de um certo texto do Calligaris em que dizia que a nossa cultura baseia-se na vergonha, enquanto que os povos orientais se baseiam na honra. Aquelas duas meninas não demonstraram sinal de vergonha, o que pode sugerir que estão mal educadas, mesmo dentro de nossa cultura ocidental.

De alguma forma, assim, escritas, essas coisas perdem o impacto, e as traduções daquela manhã parecem mais fúteis do que foram os fatos, mas presenciar aquele menino (não tão menino) gritando no corredor, os risinhos cruéis que se seguiram, a senhora que cedeu lugar ao deficiente, causaram algum efeito em mim. Obrigaram-me a pensar sobre aquilo.

(2 de fevereiro de 2008)