quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Cavalaria pisoteia a democracia no Distrito Federal




“A polícia apresenta suas armas:

Escudos transparentes,capacetes, cassetetes reluzentes

E a determinação de manter tudo em seu lugar.”

(Herbert Vianna)




Que merda de país é essa em que vivo?

Democracia? Vivo em um país onde se diz haver democracia, mas que atira cavalos e bombas de gás sobre manifestantes desarmados, espanca a imprensa. Junto com eles, o país todo é espancado. Numa democracia, os cidadãos se reúnem em praça pública, levantam as mãos, e deliberam sobre este ou aquele assunto de interesse da Hélade. Os cidadãos brasileiros estão calados e, quem sabe, se ainda existir de maneira satisfatória a capacidade de se indignar, estão mudos. Mudos de perplexidade diante do inaceitável enquanto for tolerável.

A ausência de guerra não é o mesmo que paz. Nossas tropas de choque aprenderam muito com as falanges romanas, mas nunca uma falange romana marchou sobre Roma. Nem na Roma aristocrática, os exércitos, sob os auspícios dos generais, foi atirado contra os cidadãos romanos. Nossa democracia definha triste sob os cascos da cavalaria: manifestantes desarmados enfrentavam deitados no chão a cavalaria, um pedido triste de piedade.

Nem a imprensa foi poupada, ela, que não limitava nem um pouco o direito de ir e vir da “maioria”. Talvez seja a vergonha de saber que aquilo tudo que faziam seria transmitido para o Brasil todo: aquele servicinho sujo. Nenhuma negociação. Quando é um seqüestrador, há longas negociações, mas quando manifestantes impedem o trânsito numa via pública, fazendo o que cada um daqueles motoristas deveria estar fazendo, exercendo o direito de se indignar, não há negociações. Vai à força, à lei do mais forte, impor as condições da ordem e da defesa do “bem coletivo”.

Ao que parece, a educação e a consciência se chocam com a polícia no meio das ruas. Nossa democracia é menor que a ordem. A polícia não está aí para o bem dos cidadãos, mas como a longa manus do poder executivo que insiste em reproduzir a faceta mais atrasada de nossa política, o coronelismo. Assim, a nossa polícia não é outra coisa, senão um grupo de jagunços.

Franca, 9 de dezembro de 2009

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Tróia


Essa noite eu sonhei que a Tróia estava voltando a ser filhote, e que por causa disso eu não precisava mais me preocupar com os seus comprimidos. Ela estava se tornando pequena demais para seus grandes comprimidos.

Pois então, eu sonhei que ela estava voltando a ser filhote e que tudo ia ficar bem. Que a sua doença fazia com que voltasse a ser filhote e começar tudo novamente: leite e pires; vacinas; passeios. Tudo estava bem antes de acordar.

Oh, minha amiga! Quero voltar e ver como estão as coisas, quando elas vão bem.
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"O engraçado dessa história é que, quando ela chega ao final,
ela cai dentro de um buraco e volta para o seu começo."
(trecho do filme Lúcia e o Sexo)

segunda-feira, 17 de agosto de 2009


Onde há vida


E às vezes eu acho que sempre pensaremos que haja alguma coisa por fazer, que as coisas andam sempre inacabadas, e que não se fez tudo que poderia ter sido feito para aproveitar o presente da vida. Talvez seja assim com todos os homens nesse mundo. Essa tristeza estranha de uma felicidade inacabada de um final de semana que foi bom. Que foi apenas bom. Que poderia se ter visitado os amigos só para fazê-los lembrar que você ainda os ama e que é feliz ao lado deles.

E talvez eu seja feliz com meus amigos, e acho que seja possível que só precise deles. Só preciso de alguém que possa compreender perfeitamente a minha imensa tristeza de estar só nesse mundo. O mundo é um lugar extremamente solitário, porque só nós mesmos estamos dentro da janela de nossos olhos, e há tanta vida correndo dentro de cada veia. Ah, e o cérebro! O que dizer do cérebro? Esse emaranhado de ligações sinápticas, um conjunto de eventos químicos que nos atira nesse multiverso confuso que é o mundo: uma confusão de vidas individuais se cruzando pelas ruas; topando-se nas esquinas, desavisados, idiossincráticos. São quase sete bilhões de universos somente nesse mundo? Quem sabe seja até mais, pois não sei dizer dos outros animais.

Talvez só procuremos por algo perfeito: o final de semana perfeito; o amor perfeito; aquela curva perfeita que a vida teima em não dar. E, no final, quem sabe, sempre pensaremos que deixamos algo por fazer, alguma coisa por dizer, e a vida terminando, apressando-nos a dizer a frase perfeita para compensar aquele final de semana bom no qual sentiu falta dos amigos. A busca pela perfeição num leito de hospital, à morte. A eterna busca pela perfeição. E se não encontrarmos a frase perfeita, quem saberá o que se passa dentro de nós? E a vida nos apressando, colocando pó nas coisas e rugas nos homens.

A vida não é algo que ganhamos, é algo que vamos perdendo. É algo que vem correndo atrás de nós, e a vida só existe dentro de nós. Não vamos encontrá-la por aí, na natureza, sem que alguém a esteja usando. E quem adivinhará toda a vida que corre debaixo de minha pele, permeando meus ossos, minha carne, tudo. E sei que deve acontecer isso com todos os outros nesse mundo, e não conseguimos encontrar a frase perfeita, enquanto a vida vem nos apressando. Há perfeição?

Então, de relance, vemos a perfeição num olhar, num abraço, num silencioso sorriso, num beijo... Somente então percebemos que não há palavras para aquilo. Nada que descreva, e que aquilo nunca mais vai acontecer novamente. É a perfeição visitando a gente, só por um momento, a contar que a vida é isso. E não se pode guardar a vida, nem com palavras. E, mesmo percebendo tudo isso, voltamos a procurar as palavras perfeitas, a frase perfeita. Fazemos isso porque somos homens, e somos cantores desse mundo, e procuramos a música perfeita do universo... Então pedimos para o flautista tocar mais uma vez, para voltarmos a procurar.


Para Sir Willian Blake

segunda-feira, 27 de julho de 2009

E é só

I

O meu marido me deixou
Estou reaprendendo a trabalhar
Hoje é sexta-feira e é noite
A internet vulgarizou a minha vida
Estou igual a seis bilhões de vidas
(Será que é sexta-feira em todo lugar?)
Hoje é noite de uma sexta-feira
E estou triste
Qual é o fim de uma vida?
Quando sabemos que não há mais nada?
Por que perdemos a esperança?
Hoje é uma sexta-feira
E só eu estou triste.

São 5.999.999.999 rostos felizes e despertos
Parece que os encontrei a todos nas ruas
Todos estão felizes
E só eu entristeci
Daqui a uma hora serão dez horas em outros lugares
E ninguém sorrirá
Mas estarão todos felizes por dentro
É agora em diferentes lugares
Em intervalos de uma em uma hora
E só eu não participo de tantas horas
Estou só
E ninguém além é triste.

Ele também deve estar feliz em algum lugar
Estou reaprendendo a trabalhar
Mas isso é de dia
Durante o dia
Minhas noites são vazias
Volto pra casa, tiro meus sapatos, as meias
É frio aqui
Tiro as calças, fico com a blusa
E estou só
Completamente só
Mais só do que devia
É quase meia noite
E ninguém mais é triste
Só eu envelheci.

Vou para a cama
Pego os restos de minha última quimera
Quero entrar com bagagem e tudo no mundo dos sonhos
Nesse mundo espectral onde encontro outros tristes
Tão tristes quanto eu
Estou só
E só eu sou infeliz no mundo
E tem gente acordando em outros lugares do mundo
Estou reaprendendo a ficar sozinha.


II

Nos sonhos eu me encontro
Encontro outros “eus” que me violam
Incontidos.
Arrasto meu corpo e procuro um outro
Que me conheça.

Assim, eu me exploro, entro em mim
Sou outro a me procurar
A entrar em mim, secretamente
A meter dedos e língua
A me beber e a me chupar
E a chupar seus dedos
Meus dedos.

Invado-me
Heroína de mim a me salvar
A me visitar em sonhos
A deixar sua saliva (que é minha)
Escorrer para dentro de mim.

Afasto minhas pernas e recebo
Essa boca que eu mesma inventei
Essa língua que eu sei guiar
Para onde eu preciso
Úmida de prazer.

Acordo molhada de meu gozo
E de minha saliva imaginária
Que escorre de dentro de mim
Molhada de sexo
Misturada.
O pouco de mim que resta me resta
Depois do sonho.

quinta-feira, 23 de julho de 2009


Contos de ônibus
Os três tênis


Faz exatamente uma semana, hoje. Devia passar um pouco das seis da tarde, era portanto o início da noite. Naquele dia eu não ia encontrar a Sílvia, então tomei um ônibus em direção à minha casa bem mais cedo que de costume. Ele não demorou a chegar ao ponto, o que sempre gosto de encarar como um presságio de que as outras coisas todas sairão bem. A parada que escolhi é estrategicamente escolhida, pois nela o ônibus ainda chega não muito cheio, quase sempre, com alguns lugares ainda para se escolher.

Naquela noite, em especial, parecia que tudo ia dar certo. Havia alguns lugares vazios, um era à janela do coletivo, num banco de dois lugares. Adoro me encostar ao vidro e tirar longos cochilos, pois eles dão a aparência de “instantânea” às minhas viagens de uma hora de duração. Claro que sentei nesse banco de dois lugares, ocupando o lado da janela. A maioria das pessoas prefere as janelas aos corredores.

Acomodado, tranqüilo, não demorou muito para o meu sossego acabar. É que veio sentar ao meu lado um senhor não muito velho que estava levemente bêbado. Eu reparei isso porque, nas curvas, ele apoiava seu ombro ao meu, como que para segurar o próprio peso. Seu hálito logo confirmou as minhas suspeitas. Ele carregava algumas sacolas pouco discretas que atrapalhavam o trânsito no corredor. Esses inconvenientes, o ombro jogado sobre mim, as compras no meio do corredor, fizeram com que julgássemos aquele homem. Julgar é o patrimônio comum dos homens. Não demorou muito até que ele resolvesse sacar do bolso um velho celular de visor colorido. “Só me faltava essa”, pensei. Não fiquei muito feliz com o meu companheiro de translado. Ele tinha dificuldades em apertar as teclas, mas muito lentamente ele foi conseguindo discar o número que desejava. Eu estava muito impaciente com ele, então tudo o que fizesse me causava irritação.

Ele conseguiu discar o número desejado, então ele travou a seguinte conversa ao telefone:

- Oi filho! Olha vai lá pra casa hoje... quero falar com você. Não, vai pra minha casa hoje, comprei três tênis para você e seus irmãos. Vai lá em casa, que eu comprei três tênis. Ta certo, se der você vai. Vou ficar esperando, comprei três tênis para vocês. Vai lá em casa, agora. Já estou chegando. Vai pra lá agora, que eu quero te dar os tênis.

Ele conversava de uma certa maneira que imprimia à conversa confusa que travava uma certa dignidade que não existia. Ele pelejava por ser sóbrio ou por parecer sóbrio. Eu ouvia a tudo de maneira muito discreta, mas acompanhava a história com alguma curiosidade. Ficou claro que ele não morava com os filhos, que devem ter ficados com a mãe, e que ele estava ali, ao telefone, tentando a companhia deles, talvez o respeito, dando a eles um motivo para visitá-lo.

Compaixão é o sentimento que nos faz experimentar de forma compartilhada, segundo nosso próprio julgamento, claro, a experiência vivida por outra pessoa. Eu acho que era esse mesmo o nome do meu sentimento naquela hora: compaixão. E enquanto comparava a sua vida com a minha, ele se virou pra mim e me mostrou as suas mãos, mãos fortes e grossas como se alguma lixa houvesse substituído a pele, mãos como as de pedreiro.

- Eu sou trabalhador, moço. Olha as minhas mãos. Comprei uns tênis pros meus filhos. Sabe, eu te conheço. Você não é amigo do Luizinho?

- Não. Não conheço nenhum Luizinho. E realmente, puxando em minha memória, não me lembrava de algum Luís que me conhecesse. Então ele emendou como quem dissesse “isso não é importante, é você mesmo que eu conheço”.

- Você sempre foi muito sério. Não tem nada não, cada um é de um jeito. Mas você sempre foi muito sério. Quando você tiver seus filhos, vai ver: a gente muda; o importante passa a ser os filhos. Quando tiver seus filhos, você vai mudar o seu jeito.

Depois disso posto, um silêncio nos acompanhou até o sua parada, quando ele se despediu respeitoso, e se levantou. É, julgar é um patrimônio comum dos homens.

Devo ainda ter ouvido alguém reclamar de seus esbarrões, antes que ele descesse.
(escrito em julho de 2009)



com.pai.xão
sf. Pesar que nos desperta a
des-
graça, a dor, de outrem; dó, comiseração,
piedade. [Pl.: -xões]
(fonte: Miniaurpelio Século XXI Escolar)

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Turma da Bocuda - Tarlei














Com os olhos pintados de azul


Quando minha irmã e eu éramos crianças, eu me lembro, ela brincava de bonecas. Ela tinha bonecas de muitos tipos, nenhuma muito cara, e suas amigas traziam outras para brincar. Eram várias bonecas de vários tipos diferentes. Todas de uma mesma etnia, ou de etnias muito parecidas, eu não me lembro de minha irmã ter tido uma boneca negra. Bonecas, quando eu era criança, gostavam de vir com os olhos pintados de azul. Eram assim as bonecas, se bem me lembro.

Estudei em uma escola mista, onde os alunos mais velhos dividiam o espaço durante os intervalos com os mais novos. Eu me lembro de um dia, quando eu estava no pré-primário, durante o recreio, eu morava perto de um bairro predominantemente negro, a Vila Santa Cruz, vi alguns garotos negros conversando, eram muitos. Mesmo com tantos negros no mundo, em minha sala de aula não tinha nenhum. Eu estranhava aquela cor de pele, aqueles modelos de rosto, aqueles tipos de sorrisos. Eram diferentes, não tinha dúvidas disso. Eu me lembro exatamente da sensação. Lembro também de ter pensado que não queria estudar no ano seguinte com algum daqueles meninos, intimamente eu pedia a Deus que me separasse eternamente dos negros.

No ano seguinte eu mudei de escola, fui para um bairro mais pobre, mais próximo da minha casa, era um bairro com bem menos negros. Lembro de ter apenas dois, em minha sala, pode ser que havia outros, mas eu me lembro de dois, somente: uma menina que chorava muito, por qualquer coisa; um menino, que, calhou sentar à minha frente. Acho que o destino e eu havíamos esquecido do pedido que eu fizera, logo aquele menino se tornou um grande amigo de escola, é verdade que eu não me lembro mais do seu nome, mas ele foi o meu primeiro amigo na escola. Com ele, lembro bem, aprendi que se jogássemos água aos olhos quando estivéssemos com sono, acabava-se com o sono. Nunca achei que isso funcionasse bem, mas como faço isso até hoje, sempre me lembro desse menino mal desenhado em minha memória e do qual eu não sei o nome.

Tive outros amigos depois dele, mas não me lembro de nenhum que, por tão pouca coisa, me fizesse adquirir um hábito tão arraigado, mesmo sem ter me convencido.

Enquanto éramos amigos, eu nunca me lembrei daqueles meninos negros conversando no pátio ou da sensação que aquilo me produzira. Somente depois de anos minhas lembranças perfilaram os dois acontecimentos, separados apenas por um curto espaço de tempo de menos de um ano. Quando somos adultos, um ano não é o suficiente para separar dois eventos, mas, quando se tem seis anos de idade, um ano pode produzir entre um evento e outro o mesmo efeito que o Oceano Atlântico causa entre a América e a África, a distância.