quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Meu orgulho te mede


dos pés à cabeça.

Sorrisos na manteiga

Hoje eu me lembrei de quando desenhava sorrisos na margarina. Em minhas lembranças, eu era tão feliz. Se bem me lembro eu corria pela rua e entrava em construções, em velhas casas que não se alugava. Em casas baldias, cheias de mato do lado de fora e vermelhões sem cera do lado de dentro.

Corria de quê? Para que eu corria tanto? Corria para aproveitar o dia que se encerrava às seis da tarde - no mais tardar às sete, quando os adultos tinham algo mais importante para fazer. Corria porque, naquela época o dia era curto. O dia é sempre curto quando somos felizes.

O mesmo pau que era a metralhadora, era também a espada. As balas imaginárias sempre zuniam perto dos ouvidos dos inimigos. Entrincheirados em quintais alheios, duplamente escondidos, dos inimigos e da vizinha má que, certamente, levava mais a sério esse papo de propriedade privada do que eu. Eu me preocupava mais com os inimigos.

Havia muros baixos, portões sem cadeados. Trocávamos velhas garrafas por picolés de diferentes cores. O picolezeiro era sempre um velhinho, a não ser quando meu primo também resolveu vendê-los. Lembro dos palitos premiados, eu poderia pegar um outro picolé no dia seguinte, de graça, ou eu poderia chupar outro picolé no mesmo dia se corresse e ainda o alcançasse na rua de cima.

Eu sentia inveja dos ossos quebrados dos meus amigos, sinal claro de que foram mais ousados do que eu. Essa foi a minha grande frustração de moleque, não ter quebrado nenhum osso, mas jogava cadeira salva de igual para igual com os mais velhos.

Os refrigerantes num engradado atrás da porta, escondidos, sempre prenunciavam festa. Acho que todo mundo era mais pobre que hoje.

Eu era feliz?

O que foi feito daquele sorriso fugidio na manteiga, que nunca ficava como o do comercial? Onde estão minhas armas e porque hoje tenho tanto medo de casas vazias, à noite? Hoje só compro picolés caros na padaria. Bebo refrigerante todos os dias. Por que é que os dias estão mais longos? Por que é que o dia demora tanto a passar, hoje?

sábado, 2 de fevereiro de 2008



Outro conto de ônibus


Eu estava atrasado ontem, quando entrei naquele ônibus que me levaria até o Centro. Não era preciso fazer a integração, afinal, o novo endereço da estamparia é no centro da cidade mesmo, um pouco abaixo da Santa Casa.

No ponto, eu havia engatilhado uma conversa com uma amiga, mas não pude continuar dentro do ônibus, pois os últimos dois lugares que havia, juntos, uma menina que entrara antes os tinha ocupado. Tivemos então que sentar em bancos distintos, esse foi o final prematuro de nossa conversa. Sentei próximo ao banco dela, imaginei que seria de bom tom eu me despedir dela quando chegássemos ao ponto onde desceríamos. Ficou claro muito rápido, no entanto, que não seria fácil ficar naquele local: passados uns dois pontos, todos os lugares “sentados” estavam já ocupados, e no corredor já se começavam a apinhar as pessoas. Por ser dia primeiro, os aposentados se dirigiam aos bancos, então eu teria de ceder logo meu lugar a um idoso.

Entrou uma senhora gorda, que se movimentava com dificuldade pelo corredor e que passava de maneira muito desconfortável pela roleta. Eu me levantei e ela sentou-se no lugar que eu acabava de deixar vago. Tudo muito normal, nenhum agradecimento, nada assim – os francanos têm uma capacidade muito evidente de serem frios e objetivos, às vezes – sabíamos que eu cumprira o meu papel de levantar e que ela cumprira o seu papel de ocupar aquele lugar. Não havia necessidade de uma palavra ser dita ali.

Fiquei de pé no corredor, notei então que um velho estava sentado e ocupando o corredor com metade de seu corpo. Aquilo atrapalhava a circulação, então olhei para ver o que acontecia. A moça que frustrara os meus planos ao ocupar um daqueles dois últimos lugares, aquela mesma que entrara pouco antes de mim e de minha amiga no ônibus, ela havia engatilhado uma conversa com uma amiga que estava no banco detrás do seu, então sentara mais ou menos de lado no banco, de maneira que ocupava o seu lugar todo e parte do outro lugar, obrigando o aquele senhor a ficar naquela situação desconfortável. Mesmo diante do inconveniente que infringia, conversava animada, exibindo toda a sua juventude e estupidez que se projetavam brancas por uma bermuda que exibia as suas pernas. Sua conversa era alta e podia-se ouvir sem nenhum esforço todo o conteúdo (?).

Acomodamo-nos àquele transtorno da melhor maneira que pessoas que andam de ônibus com alguma freqüência conseguem. No corredor continuava a aumentar o número das pessoas que se dependuravam naqueles varais de gente. A situação ficava mais desconfortável. Foi quando a mulher que sentava no mesmo banco da amiga resolveu se levantar e ir para a porta, pois seu ponto se aproximava. Então, para minha surpresa, a menina das pernas brancas atirou sua mochila por sobre o seu acento, ocupando com ela o lugar que acabava de ficar vago. Então se levantou e tivemos que nos espremer para que ela pudesse pular para o banco de sua amiga; ela bem poderia ter ocupado aquele lugar desde o início, mas resolvera fazer aquilo apenas naquele momento de ônibus lotado. O senhor que até então atrapalhava o tráfego pelo corredor saltou para o lugar da moça, à janela, e uma nova senhora ocupou o seu lugar, agora devidamente acomodada dentro do espaço de seu banco. A viagem seria mais tranqüila para mim a partir de então, pois pude me encostar nos bancos ao invés de ficar no meio do corredor.

Uma nova cena se formou, envolvendo inclusive aquela senhora que acabava de sentar. Enquanto eu estava distraído com os acontecimentos que descrevi, uma nova cena se formou ao meu redor sem que eu percebesse. Quantas dessas cenas não devem se formar ao nosso redor sem que sejam notados por nós: cada vida ocupando um lugar no ônibus e pensando, acontecendo, vivendo e explodindo discretamente. Um menino que eu não havia notado até então se inclinava e olhava as duas belas amigas com algum interesse indiscreto. Pensei a princípio que ele as conhecia de antemão, mas os fatos que se seguiram fizeram entender que não era isso. O menino começou a conversar com elas de forma bem alta alguma frase que era repetida de maneira insistente. Essas coisas sempre nos pegam de surpresa, mas acho que era alguma coisa como “Obrigado por me deixar sentar!”.

A mulher que tinha sentado ainda há pouco se voltou para trás danou de forma incisiva com o menino. Ele obedeceu prontamente e se calou, as duas meninas ficaram mudas também, mas havia um certo ar de graça em seus rostos, mais tarde eu interpretei esse ar de “graça” como falta de piedade mesmo, notei então que talvez aquele menino fosse mais velho do que pensei a princípio. Na outra fileira uma senhora desocupou um lugar e o ofereceu ao “menino”, ele se sentou ali quase que mecanicamente, nenhum sinal de satisfação foi esboçado por ele, então a mulher que ralhara com ele pouco antes gritou a alguém:

- Fulano! fique de pé ao lado dele para ele não sair!

Logo, um senhor, talvez o marido dela, longas barbas brancas, ocupou a lateral do banco fechando-o como se fosse uma porta.

Aquela cena toda, aquela senhora que desocupou o seu lugar para aquele menino com deficiência mental sentar, sugeriu que talvez exista uma espécie de acordo entre os mais velhos de uma convivência paciente com os mais jovens. As duas meninas preferiram rir da situação a tentar ajudar uma pessoa naquela manhã, então os idosos buscaram uma solução entre eles.

Eu aprendi a ceder lugar aos mais velhos em minhas aulas de terceira e quarta séries do primeiro grau. Hoje eu interpreto isso não apenas como uma norma vazia de etiqueta, mas a vida prática indica que os mais velhos sofrem mais dentro os transportes coletivos, logo, devemos abrir mão de nosso conforto para aliviar uma dor alheia. Assim como deixar de comer carnes para diminuir o sofrimento absoluto no mundo pode ser razoável a um grande número de pessoas, essas pequenas ações podem também reduzir a quantidade de sofrimento sobre o mundo. Se fosse mera etiqueta e um respeito vazio aos mais velhos talvez eu não continuaria a repetir esse gesto, mas trata-se de ter piedade. Essas ações, quando repetidas, mesmo que por obrigação, costumam incutir um sentido de piedade no espírito daquelas pessoas que as praticam.

Aquelas duas meninas me fizeram lembrar porque se deve ceder lugar num banco a um velho. Fizeram lembrar também de um certo texto do Calligaris em que dizia que a nossa cultura baseia-se na vergonha, enquanto que os povos orientais se baseiam na honra. Aquelas duas meninas não demonstraram sinal de vergonha, o que pode sugerir que estão mal educadas, mesmo dentro de nossa cultura ocidental.

De alguma forma, assim, escritas, essas coisas perdem o impacto, e as traduções daquela manhã parecem mais fúteis do que foram os fatos, mas presenciar aquele menino (não tão menino) gritando no corredor, os risinhos cruéis que se seguiram, a senhora que cedeu lugar ao deficiente, causaram algum efeito em mim. Obrigaram-me a pensar sobre aquilo.

(2 de fevereiro de 2008)







terça-feira, 29 de janeiro de 2008




Pertenço à linhagem miserável dos homens que são infelizes por natureza, e que transformam tudo em nada, e que fazem planos e não acreditam. Sou da mesma raça daqueles que fecham os olhos e, nas imagens das lembranças de suas cabeças, está tudo embaciado, emoldurado por uma visão negra e, em cima de tudo isso, está a Morte, com sua cara de espantalho de osso de cabeça de boi, com ambas as palmas voltadas para baixo na ponta de seus braços abertos, como se fosse um Cristo Redentor ao contrário.

(setembro de 2003)

terça-feira, 22 de janeiro de 2008


Mundos piores

- Existem mundos piores?

O Marcelo me perguntou se acho realmente possível sermos os únicos a habitar o universo, que é imenso. Ele parece não poder acreditar que o homem seja tão especial para habitar o único planeta com vida. Mas, o que me preocupa agora é que, se existem planetas habitados, que não seja este, então devem existir lugares piores que a Terra. Planetas com casas menores, janelas menores, mais fome. Planetas com mais deuses para esquecer mais homens. Pode então existir mundos piores?

Se em minha frente se erguem muros imensos que me impedem o movimento; muros de lógicas e morais. Se tem estes muros em minha frente, onde está a minha felicidade?

Penso às vezes se, nalgum dia, em um campo de concentração nazista, os prisioneiros não jogaram futebol. Tem que ser um futebol desses nossos futebóis, não um futebol norte-americano. Imagino a seguinte cena: dois times, um, dos prisioneiros do campo de concentração, e o outro, dos guardas nazistas; eles correndo atrás de uma bola improvisada, debaixo de uma chuva fina, sobre uma lama pisada e repisada, como se fosse um curral do interior de Minas Gerais; penso também que possa ter saído um gol de desempate bem próximo do final do jogo, e que eles se abraçaram, seus uniformes listrados de prisioneiros, sujos, suas cabeças raspadas ou com cabelos bem baixos, sorrisos sinceros estampados em seus rostos (uma lágrima, agora, no meu), eles ainda com forças para jogar e sorrir, eles ainda alimentados. Sabe, imagino isso às vezes, penso que num dia qualquer, em algum campo de concentração, os prisioneiros foram felizes por alguns instantes. Será possível que isso tenha acontecido algum dia?

A felicidade parece ocupar instantes assim, momentos só de febre. Emoções que nos levam a guiar por elas, sem saber, nossas razões. E é assim que o universo escolheu se descortinar diante de mim, com estrelas a mais e estrelas de menos. Crescemos miseráveis conhecedores de quase nada. Não sabemos mais do universo que o rato conhece do seu labirinto, e, mesmo assim, escolhemos amar isso tudo. E mesmo amando a tudo isso, não conheço mais do mundo que o meu quarto miserável. Amar a vida é conhecer a engrenagem que nos esmaga e nos engole, e gostar dela mesmo assim.

Agora mesmo, uma chuva fina cai lá fora, sob meus pés não há nenhum inferno onde moram pecadores. E, em cima dessa chuva, existe um céu completamente deserto, sem ninguém, além de nós, a dar significados às coisas. Não há mais ninguém no universo olhando por um telescópio voltado em nossa direção imaginado semelhante coisa. Quinze bilhões de anos! Foram quinze bilhões de anos para que o universo chegasse até aqui. Foram quinze bilhões de anos para isso! Para chegarmos em nosso ápice, para prendermos pessoas em guetos e desenvolvermos a energia nuclear para fins pacíficos. É muito tempo! Quinze bilhões de anos para isso...

Não foram sete dias, os da Criação. O problema não foi o sábado. Tudo foi criado num instante infinitesimamente pequeno, como num jogo de sinuca. Aquele breve momento em que o taco toca a bola, depois todo o destino está traçado. Não deve haver mundos piores que este, não.

Mas essas pessoas, todas essas seis bilhões de pessoas, têm certeza. Mais que isso, têm certezas, todas elas, cada uma com uma certeza diferente, todas as certezas reunidas em seus pequenos cosmos, egocosmos. Constroem suas pequeninas vidas retas, não há duvidas, não existe espaço para dúvidas em cima de linhas retas. Escondendo atrás de seus óculos redondos e segurando seus pequenos filhos gordos, que também terão certezas, erguem suas torres e constroem seus faróis. É isso, são faróis de certezas luminosas contando onde o mar é fundo e não tem pedras, enfim, indicando onde as águas são seguras. Ostentam suas pequenas bíblias e não se pejam em sacudi-las sempre que são perguntadas sobre alguma coisa que envolva a humanidade. Apenas isso, era sobre a humanidade, a pergunta. São menos que humanos. Num universo que não é mais plano, num universo onde não existem mais linhas retas, eles mantêm seus caminhos retos: oferecem a outra face e seguram suas facas de dois gumes.

...

Hoje eu fiquei uma hora inteira rebobinando um filme com a mão, apenas para esconder o quê estraguei. Uma hora escondendo o meu crime com a mão, mas agora está perfeito, o crime está perfeito. O tempo esconderá as perguntas. O oposto perfeito de O tempo é o senhor da verdade.

Finalmente, com isto, minha vida me afastou de Deus. Meus atos foram amorais, enrosquei-me em minhas próprias pernas, não perdi perdão no final. Deus não existe. Eu parecia atrair todos os olhares do mundo enquanto cometia o meu crime. Dois desses olhos me condenavam mais que os outros: os meus.

Deus não existe. Enquanto falo isso, você me condena.

Sua vida me afaga
Minha vida me afoga
Eu me afogava
Enquanto você me afagava...
Sua vida me afoga.


Tenho certeza disso, mas nem sempre acho tudo isso exatamente assim. Duas vidas sempre terão conflitos... Erramos o tempo, a hora. Abri as cortinas daquela parede sem janelas e o relógio estava lá, mas já não importava mais, eu não tinha mais tempo, naquele relógio só havia mais uma dez horas para mim; eu já era infeliz, minha voz ficou sem som, nossos quatro olhos cinzas a se olhar e prometer Nunca mais. De repente todas as possibilidades sumiram diante do meu nariz. À minha frente, somente uma estrada reta (e justamente para mim, que não acredito em linhas retas), escura, sem cruzamentos, sem companhia. Eu não tinha mais que escolher nada, era somente andar sempre para frente.

Seus olhos ficaram para trás, depois sumiram. Eles já não me olham há algum tempo. O fim dos relacionamentos.

Três mulheres

Ontem, quando vinha embora da casa da Silvia, eram oito horas da noite, cedo portanto, andava apressado, meio de mau humor, e quando chegava no terminal de ônibus da Estação uma mulher se vira para mim, em minha trajetória balística, e pergunta de um ônibus que passava ao mesmo tempo que eu, quase na mesma velocidade:

- É do Aeroporto?

- Não! Respondi secamente e continuei sem me interromper. Fui parar há uns dez metros depois e fiquei observando.

Todo ônibus que parava no ponto, a mulher caminhava até a porta e perguntava se era do Aeroporto, depois voltava para perto de suas duas amigas. Pareciam ter todas os seus quarenta e oito anos, mas bem poderia ser menos. Mudaram de lugar, logo em seguida, para um lugar mais conveniente, mas se eu me virasse e olhasse sobre os ombros, podia ver que continuavam perguntando a cada ônibus que parava se aquele seria o do Aeroporto.

Fui até elas e perguntei:

- Para qual Aeroporto vai?

Seguiu-se então o seguinte diálogo:

- Aeroporto 3.

- Olha, eu vou para o Aeroporto 2, caso o seu passe antes do meu, eu te aviso...

- O 2 também serve!

-Tá! Então eu aviso qualquer um dos dois que chegar.

Ia me virar para ficar de costas para ela, e de frente para os ônibus que chegavam, quando ela me interrompeu, dizendo:

- Eu não enxergo direito sem meus óculos. E esfregava os olhos como que para ilustrar o que acabava de me dizer. - Eu não vejo praticamente nada, então não consigo ver para onde vão os ônibus.

- Claro! Respondi enquanto sorria da forma mais simpática e crédula que conseguia.

A verdade é que aquilo me causou uma certa compaixão, mas não uma dó do outro, aquela compaixão de compartilhar as paixões. Eu sofri ali, junto dela, a mesma vergonha que ela sentia. A vergonha de não saber ler, nenhuma delas, e de ter de explicar porquê não lia. Criar uma farsa para justificar não saber ler, como se isso precisasse de explicações, como se não houvessem no mundo pessoas que sabem ler e outras que não sabem.

Fiquei ali observando, logo o Aeroporto 3 passou, ela agradeceu e foi embora. Olhei para ver se ela confirmaria com o motorista se aquele ônibus ia realmente para o Aeroporto 3, mas ela não perguntou. Fiquei observando, porque eu perguntaria, afinal, seria a informação de um perfeito estranho. Imagino que ela tenha perguntado ao cobrador enquanto esperava o troco, mas encaro isso como uma certa consideração por alguém que lhes ajudou: não parar na porta e perguntar. Isso é bondade. Conhecer as letras nem sempre ajuda as pessoas a serem boas e respeitáveis, e não conhecê-las, nem sempre atrapalha nisso.



segunda-feira, 7 de janeiro de 2008


Sobre homens de verdade

Há dez anos atrás eu era um recém formado em Eletrotécnica, e pensava até ter vocação para o ofício, queria ganhar a vida assim. Fui convidado por um amigo a trabalhar na reforma da agência dos Correios de Araraquara. O Salário seria de R$20,00 por dia, na época era uma boa paga. Além do salário, eu dormiria no canteiro de obras e comeria da mesma comida dos outros peões, o que me faria viver de segunda a sexta-feira GRATUITAMENTE, isso era de grande valia para mim. Toda sexta-feira eu voltaria para Franca e sairíamos segunda-feira, pela manhã. Um bom serviço.

Nessas obras o que sempre prevalece são as empreiteiras, chegando lá me deparei com o seguinte cenário: um canteiro de obras e muitos homens enormes e rudes, os famosos “peões-de-trecho”, são aqueles que deixam as suas famílias e que aqui, sozinhos, tentam a sorte com seus “bons salários”, serviço pesado, vida pesada. São pessoas atiradas para fora da vida, e que conservam de sua vida difícil em sua terra natal apenas a pele áspera e morena (meu padrinho era pedreiro, conhecia bem aquela cor de homens pintados pelo sol; encontrava a mesma cor em minha mãe ) e o olhar triste, às vezes mal. Meu padrinho era pedreiro, conhecia bem aquela cor de homens pintados pelo sol; encontrava a mesma cor em minha mãe, ela lavava roupas ao sol. Eram homens duros de compleição forte, sem família.

Em meu primeiro dia naquela obra, em meio àquelas pessoas completamente diferentes de mim, pensei que deveria ser apenas aquilo que já era, minha vida não se assemelhava à vida daqueles outros tantos homens dali, apenas nosso presente era comum, nosso passado nos distinguia bastante. Eu não era nem parecido com eles, e eles notaram. Apesar das diferenças, gostei daquelas pessoas no instante em pus meus olhos sobre elas. Era àquele lugar que gostaria de pertencer, queria ser como eles, parecidos que criados no hades e transmutados para um clima tropical, ou seja, completamente adaptados ao calor. Durante o almoço, minha primeira diferença dos demais se anunciou, como meu passado me permitia, não comia carnes, era uma crença de natureza praticamente religiosa, o cozinheiro era capaz de entender isso melhor que eu próprio, a natureza religiosa da minha diferença imprimia nela um sentido de beleza que eles conseguiam notar, eu estava disposto a comer apenas arroz e feijão, nunca gostei muito de sacrificar cotidianos de outrem, informei ao cozinheiro que não comia carnes, ele foi até a cozinha e, sem me dizer palavra, fritou alguns quiabos. Aquilo me impressionou muito, aquele zelo era de uma singeleza que provavelmente eu entendesse melhor que eles, um cozinheiro enorme que é capaz de arrumar uma alternativa para um eletricista metidinho. Devia ter chorado.

Eles me tratavam também de uma maneira especial porque eu tinha o hábito de ler antes de dormir. Lia naquela ocasião o livro Uma Breve História do Tempo. Eles assistiam a novelas. O ato de assistir novelas era um evento social, até. Durante a noite se reuniam todos, inclusive o mestre-de-obras, e assistiam com enorme prazer e faziam comentários acalorados. Os temas versavam principalmente sobra a beleza de uma ou de outra atriz. Lembro-me de uma vez o mestre de obras ter conduzido a conversa para o tema livros, quando me contou que também gostava de ler. Ele me respeitava por isso, e nem sabiam que livro eu lia. Talvez eu fosse o que eles queriam para seus filhos.





sábado, 5 de janeiro de 2008


Criatura



I

Por que me escondem os calabouços?
Negro, sou negro
Ave de vulto marginal
Asas negras acompanham o meu vôo
Insípido.

Eu nú, coroado ao meu gosto
Co’as roupas do velho rei
Minotauro me espera na caverna
O mundo olha calado
O minotauro e eu.


II

Aquele velho santo me olha
Co’a cabeça emendada no pescoço
Olha e julga com a cabeça trocada
Ele pensa:
-Quase dez anos...
-Foram quase dez anos.

Eu me calo
O silêncio acusa aquela precisão
Posso olhar ao meu redor
Mas quem saberá?

Alguém saberá dos meus pensamentos
Alguém saberá dos meus maus pensamentos
Alguém saberá que sou mau
Ah! Baixo a cabeça, condenado.


III

Baixo a cabeça e escondo meus olhos
Tenho medo que alguém leia
Através de meus olhos o meu espírito mau
Escondo meus dentes atrás dos lábios
Um sorriso triste se anuncia
Levanto os meus olhos tristes
Sorrio sorriso calado
Minha boca ainda esconde meus dentes
Não a abro
Sorrio assim meu sorriso calado
Tivesse eu garra ao invés de dentes.


IV

Trocaria meus dentes
Se me ofertassem garras
Teria olhos frios
Talvez um olho vazado
Seria assim criatura forte
Após nove anos e meio no deserto
Emergiria de lá homem forte
Armado
Traria gengivas nuas
Teria dois olhos maus
Na ponta de cada dedo, uma garra afiada
Na pele, um suor mal lavado
Um cheiro de urina no saco
Pelo aspecto mau
Pensariam que sou forte
Colocariam pratos de comida aos meus pés
Copos cheios de sangue de cabras imoladas
Rezariam missas em meu nome
Tudo que aplacasse meu ódio.

Eu não diria nada
Um deus nunca responde orações
Teria uma virgem por noite
Em minha cabana.


V

Mas sobrevivi fraco
Magro, pálido e caído
Rastejando como quem perdeu a guerra
E sendo a guerra já perdida
Escondeu.

Perder uma guerra de dez anos
Como Tróia
Cortar fora as próprias pernas
Durante luta feroz
Em meu ombro direito a marca da derrota
Marcado, como o gado é marcado
Com a doce ternura da posse
Andei mais para o leste
Procurando o mar
Encontrei muralhas ao meu redor.


VI

O amor escondeu fundo seus braços
Dentro do meu peito
O amor sorriu para mim
Tem gengivas nuas e mal cheirosas
Tem garras nas pontas dos braços
Tem asas e bicos de corvos
Dependurados no pescoço
Como se fosse um colar
E, fosse como fosse
Eu abracei esse amor...

Era ele mesmo o amor?


VII

Sobre a minha mesa, folhas de papel cartão
Com meu coração desenhado
(Quem reconheceria?)
Vontade de colocá-los no correio
Todos
Todos os meus corações espalhados pelo mundo
Como se o vento os tivessem levado
Todo o mundo seria o meu cronista
De milhares de cronistas espalhados
Como se tivessem todos escapado
De minha escrivaninha.


VIII

Freqüenta a voz fatal do meu algoz?
Uma fumaça de cigarro invade o meu quartel
Sabe onde moro?
Conhece a noite em que estou?


IX

Formigas imaginárias
Freqüentam um prato sujo que repousa
Em meu lugar, sobre a minha cama
Eu, nessa escrivaninha
Desenhando corações em papéis cartão
Estou no lugar errado
Pois a noite se adiantou bastante
Estou no lugar do copo
Um copo que dorme e sonha com formigas
Se eu não estivesse com fome
Eu sonharia também.

Eu vejo o sonho do copo
Eu vejo o copo sonhando.


X

Num mesmo quarto:
Eu, um copo dormindo em meu lugar
E as formigas que o copo sonha.

Emirjo de um sonho assim:
Sedento, alquebrado, procurando a porta
Que dá mais facilmente para a sua casa.

É verdade que um copo sonha em meu lugar?


XI

Procuro a representação mais sonolenta da humanidade
Recordo os dias de sonhos
E algumas solenidades

Imagino um sol de um dia quente
E lembro de seus olhos
Enormes olhos maquiados
Que parecem ainda maiores assim
Lembro da festa em que dançava
Para um número infinito de homens
Rebanhos enormes e criminosos
Que, de repente, se sentem puros
Ao sentar na cama e sonharem com você...

Isso! devo evitar os sonhos
Devo evitar seus olhos
Que o copo sonhe com formigas
Isso é bem menor que o meu sofrimento.


XII

Velozes, dez anos se assentaram sobre mim
A tristeza ergueu paredes
Como se fosse uma casa sem portas
Sem janelas
Ah, tristeza itinerante!
Visita essa casa ainda para ontem
Traga notícias boas de desconhecidos meus
(Sim, isso mesmo, isso tudo que é novidade
De seres que não ocupam demograficamente meus sonhos)
Grande surpresa!
Traga boas novas de pessoas
Que ainda não bateram à minha porta
Que não me pediram sopa

Quero notícias novas de pessoas novas
Que bela surpresa!





(A casa na árvore:
caneta nanquim 0,01 em folha A4;
dezembro de 2007)




Uma buceta e um guaraná

Eu me lembro de que, quando era criança, juntava dinheiro com mais dois colegas e íamos a um boteco que tinha em frente à escola e pedíamos “um guaraná”. O dono do boteco pegava uma garrafa de refrigerante de 600ml mais três copos, e entregava para a gente. A garrafa rendia exatamente 4 copos, ou seja, cada dia um de nós tomava dois copos, esse rodízio nunca rendeu nenhuma discussão.

Mais tarde, fiquei sabendo que “guaraná” era um sabor. Fiquei sabendo também que eu deveria pedir um “refrigerante”, por ser mais correto. Nunca mais pedi o meu guaraná; tenho pedido religiosamente pelo meu “refrigerante” desde então.

Lembro também de que, numa ocasião, na quarta série, alguém escreveu na carteira da sala de aula a seguinte frase: “BUCETA CABELUDA DA ANA MARTA!”. Minha professora então manteve os meninos na sala por um tempo, depois que as meninas haviam saído. Ela então explicou para a gente que “buceta” não era o que a gente estava pensando, e fez com que a gente procurasse num dicionário a palavra “boceta”. O dicionário nos mostrou que boceta era uma caixinha pequena, para guardar pequenos objetos. E mesmo vendo alguma relação, hoje, entre o significado que a gente atribuía à palavra e o significado que ela nos pregava, a verdade é que, na época, eu passei a usar para nomear a buceta, a palavra que ela havia ensinado: vagina.

Não há problema nenhum em dizer em público, na maioria das ocasiões, a palavra “vagina”, ou “pênis”, tudo faz parte da maneira correta de se nomear as coisas: ser exato, preciso, científico. Assim como eu esqueci de como se pede com naturalidade um guaraná, não sei mais dizer buceta, cu, pinto, pau. Por isso, sou tão calado quando faço sexo, não pronuncio palavras, apenas gemidos que surgem naturais. É o mais espontâneo que consigo ser durante uma “trepada”.

Se eu for inquirido, durante o ato sexual, eu posso chamar de “minha putinha”, ou mesmo “puta”, posso dizer que “estou fodendo” ou ou que estou “enfiando”, mas a verdade é que eu prefiro não dizer nada, apenas gemer – o que, de certa maneira, me afasta mais dos seres humanos e me aproxima dos animais, ou seja, as pessoas menos adestradas que eu são menos animalescas, também. Se eu puder, eu não digo nada, demonstro com unhas, dedos, suspiros...

Mas, se eu pudesse mesmo, nunca escolheria ficar naquela sala de aula, onde aprendi o nome da vagina ou do refrigerante.