quinta-feira, 23 de julho de 2009


Contos de ônibus
Os três tênis


Faz exatamente uma semana, hoje. Devia passar um pouco das seis da tarde, era portanto o início da noite. Naquele dia eu não ia encontrar a Sílvia, então tomei um ônibus em direção à minha casa bem mais cedo que de costume. Ele não demorou a chegar ao ponto, o que sempre gosto de encarar como um presságio de que as outras coisas todas sairão bem. A parada que escolhi é estrategicamente escolhida, pois nela o ônibus ainda chega não muito cheio, quase sempre, com alguns lugares ainda para se escolher.

Naquela noite, em especial, parecia que tudo ia dar certo. Havia alguns lugares vazios, um era à janela do coletivo, num banco de dois lugares. Adoro me encostar ao vidro e tirar longos cochilos, pois eles dão a aparência de “instantânea” às minhas viagens de uma hora de duração. Claro que sentei nesse banco de dois lugares, ocupando o lado da janela. A maioria das pessoas prefere as janelas aos corredores.

Acomodado, tranqüilo, não demorou muito para o meu sossego acabar. É que veio sentar ao meu lado um senhor não muito velho que estava levemente bêbado. Eu reparei isso porque, nas curvas, ele apoiava seu ombro ao meu, como que para segurar o próprio peso. Seu hálito logo confirmou as minhas suspeitas. Ele carregava algumas sacolas pouco discretas que atrapalhavam o trânsito no corredor. Esses inconvenientes, o ombro jogado sobre mim, as compras no meio do corredor, fizeram com que julgássemos aquele homem. Julgar é o patrimônio comum dos homens. Não demorou muito até que ele resolvesse sacar do bolso um velho celular de visor colorido. “Só me faltava essa”, pensei. Não fiquei muito feliz com o meu companheiro de translado. Ele tinha dificuldades em apertar as teclas, mas muito lentamente ele foi conseguindo discar o número que desejava. Eu estava muito impaciente com ele, então tudo o que fizesse me causava irritação.

Ele conseguiu discar o número desejado, então ele travou a seguinte conversa ao telefone:

- Oi filho! Olha vai lá pra casa hoje... quero falar com você. Não, vai pra minha casa hoje, comprei três tênis para você e seus irmãos. Vai lá em casa, que eu comprei três tênis. Ta certo, se der você vai. Vou ficar esperando, comprei três tênis para vocês. Vai lá em casa, agora. Já estou chegando. Vai pra lá agora, que eu quero te dar os tênis.

Ele conversava de uma certa maneira que imprimia à conversa confusa que travava uma certa dignidade que não existia. Ele pelejava por ser sóbrio ou por parecer sóbrio. Eu ouvia a tudo de maneira muito discreta, mas acompanhava a história com alguma curiosidade. Ficou claro que ele não morava com os filhos, que devem ter ficados com a mãe, e que ele estava ali, ao telefone, tentando a companhia deles, talvez o respeito, dando a eles um motivo para visitá-lo.

Compaixão é o sentimento que nos faz experimentar de forma compartilhada, segundo nosso próprio julgamento, claro, a experiência vivida por outra pessoa. Eu acho que era esse mesmo o nome do meu sentimento naquela hora: compaixão. E enquanto comparava a sua vida com a minha, ele se virou pra mim e me mostrou as suas mãos, mãos fortes e grossas como se alguma lixa houvesse substituído a pele, mãos como as de pedreiro.

- Eu sou trabalhador, moço. Olha as minhas mãos. Comprei uns tênis pros meus filhos. Sabe, eu te conheço. Você não é amigo do Luizinho?

- Não. Não conheço nenhum Luizinho. E realmente, puxando em minha memória, não me lembrava de algum Luís que me conhecesse. Então ele emendou como quem dissesse “isso não é importante, é você mesmo que eu conheço”.

- Você sempre foi muito sério. Não tem nada não, cada um é de um jeito. Mas você sempre foi muito sério. Quando você tiver seus filhos, vai ver: a gente muda; o importante passa a ser os filhos. Quando tiver seus filhos, você vai mudar o seu jeito.

Depois disso posto, um silêncio nos acompanhou até o sua parada, quando ele se despediu respeitoso, e se levantou. É, julgar é um patrimônio comum dos homens.

Devo ainda ter ouvido alguém reclamar de seus esbarrões, antes que ele descesse.
(escrito em julho de 2009)



com.pai.xão
sf. Pesar que nos desperta a
des-
graça, a dor, de outrem; dó, comiseração,
piedade. [Pl.: -xões]
(fonte: Miniaurpelio Século XXI Escolar)

2 comentários:

Sósi disse...

Já falei que me fez lembrar um amigo, né? Tirando as mãos calejadas e a embriagues, eles se parecem muito.

thiago disse...

Rica e delicada percepção do indivíduo; texto deleitável.