terça-feira, 22 de janeiro de 2008


Mundos piores

- Existem mundos piores?

O Marcelo me perguntou se acho realmente possível sermos os únicos a habitar o universo, que é imenso. Ele parece não poder acreditar que o homem seja tão especial para habitar o único planeta com vida. Mas, o que me preocupa agora é que, se existem planetas habitados, que não seja este, então devem existir lugares piores que a Terra. Planetas com casas menores, janelas menores, mais fome. Planetas com mais deuses para esquecer mais homens. Pode então existir mundos piores?

Se em minha frente se erguem muros imensos que me impedem o movimento; muros de lógicas e morais. Se tem estes muros em minha frente, onde está a minha felicidade?

Penso às vezes se, nalgum dia, em um campo de concentração nazista, os prisioneiros não jogaram futebol. Tem que ser um futebol desses nossos futebóis, não um futebol norte-americano. Imagino a seguinte cena: dois times, um, dos prisioneiros do campo de concentração, e o outro, dos guardas nazistas; eles correndo atrás de uma bola improvisada, debaixo de uma chuva fina, sobre uma lama pisada e repisada, como se fosse um curral do interior de Minas Gerais; penso também que possa ter saído um gol de desempate bem próximo do final do jogo, e que eles se abraçaram, seus uniformes listrados de prisioneiros, sujos, suas cabeças raspadas ou com cabelos bem baixos, sorrisos sinceros estampados em seus rostos (uma lágrima, agora, no meu), eles ainda com forças para jogar e sorrir, eles ainda alimentados. Sabe, imagino isso às vezes, penso que num dia qualquer, em algum campo de concentração, os prisioneiros foram felizes por alguns instantes. Será possível que isso tenha acontecido algum dia?

A felicidade parece ocupar instantes assim, momentos só de febre. Emoções que nos levam a guiar por elas, sem saber, nossas razões. E é assim que o universo escolheu se descortinar diante de mim, com estrelas a mais e estrelas de menos. Crescemos miseráveis conhecedores de quase nada. Não sabemos mais do universo que o rato conhece do seu labirinto, e, mesmo assim, escolhemos amar isso tudo. E mesmo amando a tudo isso, não conheço mais do mundo que o meu quarto miserável. Amar a vida é conhecer a engrenagem que nos esmaga e nos engole, e gostar dela mesmo assim.

Agora mesmo, uma chuva fina cai lá fora, sob meus pés não há nenhum inferno onde moram pecadores. E, em cima dessa chuva, existe um céu completamente deserto, sem ninguém, além de nós, a dar significados às coisas. Não há mais ninguém no universo olhando por um telescópio voltado em nossa direção imaginado semelhante coisa. Quinze bilhões de anos! Foram quinze bilhões de anos para que o universo chegasse até aqui. Foram quinze bilhões de anos para isso! Para chegarmos em nosso ápice, para prendermos pessoas em guetos e desenvolvermos a energia nuclear para fins pacíficos. É muito tempo! Quinze bilhões de anos para isso...

Não foram sete dias, os da Criação. O problema não foi o sábado. Tudo foi criado num instante infinitesimamente pequeno, como num jogo de sinuca. Aquele breve momento em que o taco toca a bola, depois todo o destino está traçado. Não deve haver mundos piores que este, não.

Mas essas pessoas, todas essas seis bilhões de pessoas, têm certeza. Mais que isso, têm certezas, todas elas, cada uma com uma certeza diferente, todas as certezas reunidas em seus pequenos cosmos, egocosmos. Constroem suas pequeninas vidas retas, não há duvidas, não existe espaço para dúvidas em cima de linhas retas. Escondendo atrás de seus óculos redondos e segurando seus pequenos filhos gordos, que também terão certezas, erguem suas torres e constroem seus faróis. É isso, são faróis de certezas luminosas contando onde o mar é fundo e não tem pedras, enfim, indicando onde as águas são seguras. Ostentam suas pequenas bíblias e não se pejam em sacudi-las sempre que são perguntadas sobre alguma coisa que envolva a humanidade. Apenas isso, era sobre a humanidade, a pergunta. São menos que humanos. Num universo que não é mais plano, num universo onde não existem mais linhas retas, eles mantêm seus caminhos retos: oferecem a outra face e seguram suas facas de dois gumes.

...

Hoje eu fiquei uma hora inteira rebobinando um filme com a mão, apenas para esconder o quê estraguei. Uma hora escondendo o meu crime com a mão, mas agora está perfeito, o crime está perfeito. O tempo esconderá as perguntas. O oposto perfeito de O tempo é o senhor da verdade.

Finalmente, com isto, minha vida me afastou de Deus. Meus atos foram amorais, enrosquei-me em minhas próprias pernas, não perdi perdão no final. Deus não existe. Eu parecia atrair todos os olhares do mundo enquanto cometia o meu crime. Dois desses olhos me condenavam mais que os outros: os meus.

Deus não existe. Enquanto falo isso, você me condena.

Sua vida me afaga
Minha vida me afoga
Eu me afogava
Enquanto você me afagava...
Sua vida me afoga.


Tenho certeza disso, mas nem sempre acho tudo isso exatamente assim. Duas vidas sempre terão conflitos... Erramos o tempo, a hora. Abri as cortinas daquela parede sem janelas e o relógio estava lá, mas já não importava mais, eu não tinha mais tempo, naquele relógio só havia mais uma dez horas para mim; eu já era infeliz, minha voz ficou sem som, nossos quatro olhos cinzas a se olhar e prometer Nunca mais. De repente todas as possibilidades sumiram diante do meu nariz. À minha frente, somente uma estrada reta (e justamente para mim, que não acredito em linhas retas), escura, sem cruzamentos, sem companhia. Eu não tinha mais que escolher nada, era somente andar sempre para frente.

Seus olhos ficaram para trás, depois sumiram. Eles já não me olham há algum tempo. O fim dos relacionamentos.

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