quinta-feira, 10 de maio de 2012

Proposta de gente



I
A boca, calada, não é boca
Não cumpre sua função
A boca é boca enquanto fala
Fora isso, é apenas
proposta de boca.

Exatos, olhos assim não são olhos
(não olham) exatamente,
Fitando o chão
Proposta de olhos
entregue ao mundo.

Os braços tíbios
Envergonhados
Esperando o ônibus no ponto
Quietos. Sem alarmes até a hora certa
(apenas um sinal para o motorista parar).


II
Assim, com a cabeça inclinada
O arremedo de gente se atrasa para o trabalho
Vida que não cumpre a sua função.
Eu devo ter ouvido algum sussurro escapando
Daqueles olhos, não tão olhos, exatamente
Em cima daquela boca quieta, muda!

Ah! Eu devo ter ouvido...
E ouvindo assim, é claro que tudo parece nada:
o ônibus que se atrasa; o sono que custou um pouco mais;
a noite que demorou acabar. Eu devo ter ouvido!

Ah, claro que eu devo ter ouvido esse grito se fabricar lá dentro,
Na usina da vida que tem que escorrer para fora de nós todos os dias
E também, por que não, em dias iguais a esse.
Eu devo ter ouvido um grito correndo nos subterrâneos
Onde correm os ossos, onde escorre o sangue
Um berro se formando no mesmo canto onde se forma o canto.
Eu devo ter ouvido tudo isso.

E que manhã! Essa multidão de seres mudos (por fora)
Tão vizinhos dos galos (por dentro), que, se ouvissem, acordariam
Como o fazem, aliás toda manhã:
e acorda o gado novo que dá leite, e as vacas, e os homens
que separam suas tetas em grupos de três, de quatro;
e acorda essa gente toda que ruma, sem rumo,
aos distritos industriais e aos prédios comerciais,
e às escolas e aos ônibus (esses varais de gente);
e acordam todos esses troncos vazios.


III
E vamos rumando mudos
Para dentro da morte
Da mesma maneira, aliás,
Que o dia invade a noite.

Eu devo ter visto uma vida
E ela devia se arrastar
Nos subterrâneos ali
Como se fosse um esgoto.

Não como um jardim
Que cresce ao lado de um quintal.


IV
A vida devia estar na cidade
Debaixo de cada teto
Dentro de cada casa
Sob qualquer pele
Circulando num fluxo sangüíneo
Menos como uma clepsidra
Mais como uma ampulheta
Levando cabelos brancos
Aos homens.

(é assim que a vida se arrasta
nesse abraço dentro, lá dentro
intestinal, cardíaco
onde se esconde e abraça a morte
sendo ela mesma as duas)


V
A vida é isso mesmo
Ela é o cabelo branco que tentamos evitar
É o sono que custou ir embora e nos fez atrasar
E o mamão amarelecido e podre no balcão da quitanda
Com seu cheiro, com sua nódoa podre escorrida
Em riscos feitos a faca, simetricamente distribuídos
Em números de cinco, para não amargar
Mas que, principalmente, não conseguimos vender.

Deve ter havido um fato qualquer
Acontecendo nos subterrâneos daquele homem atrasado
Mal vestido, fedendo a gente logo pela manhã
Que me fez ter percebido a vida acontecendo
Secretamente, como no mamão que não foi vendido.


VI
Dentro de mim, também, silenciosamente
Deve estar a minha vida escorrendo
Enquanto reparo:
Uma manhã com um espelho em minha frente
Deixando escorrer sua nódoa por cada poro
Num rosto vermelho e triste, mas, principalmente
Calado.

Um comentário:

AlrishA disse...

*-*

A vida vivida e a vida que escapa...